terça-feira, 14 de julho de 2009

Renato Russo, Marcelo Bonfá, Dado Villa-Lobos

No início da história da banda Legião Urbana, bem no começo, estava o punk. Como nenhum começo é absoluto (o que existia antes do começo?), o punk era um princípio, digamos assim, arbitrário. Outros começos poderiam ser válidos: não seria absurdo citar as "Sun Sessions" de Elvis ou os gritos de "Love Me" dos Beatles como pontos de partida "alternativos". Mas foi o do-it-yourself, que está na base estética/política do punk, que motivou o aparecimento de um "movimento" de rock em Brasília no final dos anos 70, do qual saiu o banda Legião Urbana. Ser punk em Brasília não era exatamente um ato de rebeldia. Impossível ser apenas rebelde quando se conhece, de cor e salteado (como os punks brasileiros conheciam), a história dos Sex Pistols. A rebeldia já tinha sido desmistificada como mais uma estratégia de marketing necessária para o bom funcionamento da Industria Cultural. Malcom McLaren apenas tornou evidentes os mecanismos de produção de ídolos rebeldes. Depois dos Sex Pistols, a rebeldia sem causa não deveria ter nenhum futuro. O que restava era a desilusão, e a possibilidade de ti- rar proveito de uma sociedade que precisa de ilusão (incluindo ídolos rebeldes) para sobreviver. O "no future" dos punks acabou se mostrando cheio de consequências e de diferentes futuros. A cena pop internacional passou a funcionar na base de estilhaços de novos "movimentos" (muitos deles, seguindo o exemplo da turma dos Sex Pistols, apenas produtos de releituras ou revivals de momentos anteriores da história do rock), todos com direito aos seus 15 minutos de fama e hits. No primeiro dia de 1985, data em que a Legião Urbana lançou seu primeiro disco, o punk já era uma lembrança remota, o "New Wave" já havia se tornado um passado comprometedor, Ian Curtis já tinha se suicidado há quase 5 anos e o "Hardcore" já se cansava da tentativa desesperada de levar a rebeldia do punk a sério. A música da Legião Urbana só podia refletir esse fragmentado estado criativo, onde não existe mais qualquer cartilha a ser seguida e onde toda nova banda está condenada a reinventar, seguindo o exemplo dos Sex Pistols, sua própria história do pop. "Será", a primeira canção do primeiro disco da Legião Urbana começa com os seguintes versos: "Tire suas mãos de mim / Eu não pertenço a você". Parecia uma declaração de princípios punks, autoritária e arrogante, onde o grito de independência pressupõe o corte de todos os laços (afetivos, de qualquer tipo de pertencimento) com o mundo ao redor e com as pessoas que vivem nesse mundo. Mas "Será" não é, nem de longe, uma re-edi ção irônica de "Sub-Mission" dos Sex Pistols. "Será" é o início do diálogo (com um "você" ambíguo, em constante metamorfose, que re-aparecerá em inúmeras outras músicas da Legião Urbana) e a primeira tentativa de construção de um outro mundo regído por princípios éticos pós-punks, que levem em conta (e ao extremo) a ausência de futuro e a descrença radical sobre o que passou. "Será" é antes de tudo uma canção romântica (não foi por acaso que também fez sucesso na voz de Simone e no rítmo melodramático do pagode-suingue), tão romântico quanto a escrita do mais desesperado poeta romântico alemão, que também vivia o fim de um mundo. O sentimento predominante em "Será", e nas demais faixas do primeiro disco da Legião Urbana, não é a revolta, mas sim o desamparo ("Quem é que vai nos proteger?") e a necessidade urgente de criação de uma nova comunidade, sem depender de ninguém, já que ninguém nos protege. Essa proposta (assim mesmo desesperada e desamparada) utópica da Legião já foi interpretada/acusada de messianismo. Pode ser o caso, mas trata- se certamente de um messianismo paradoxal ou radical (mesmo em seus momentos mais cristãos), um messianismo que não transmite a "boa pala- vra", mas sim o eterno retorno do "no future" como a nova ética, uma ética sempre descrente de seus princípios, da possibilidade de melhorar o mundo, ou da existência de alguma solução para qualquer problema. Solução? Em "Teorema" a própria idéia de solução é colocada de forma suspensa: "Não sabemos se isso é problema / Ou se é a solução". Tudo é (repito: por princípio) motivo para dúvida: "Se eu soubesse lhe dizer qual é a sua tribo / Também saberia qual é a minha" (Petróleo do Futuro); "Vivemos num planeta perdido como nós / Quem sabe ainda estamos a salvo" (Perdido no Espaço); "Qual é a diferença?" (Baader-Meinhof Blues); "Quem é o inimigo?" (Soldados); "Eu não sei mais o que / Eu sinto por você" (Ainda é Cedo). O estar perdido (em qualquer espaço, e não apenas no Brasil), à deriva, também se reflete numa errância por vários estilos musicais pós-punk. Legião Urbana 1 é quase um álbum colcha-de-retalhos onde convivem vários ecos da fragmentação pós-punk. "A Dança" lembra o funk-punk do Gang of Four, "Ainda É Cedo" tem a melancolia do "Joy Division" e do primeiro "U2". A Legião Urbana gravou até um reggae e um "punk-básico" (mesmo na letra) como "Geração Coca-Cola" (composição do tempo do "Aborto Elétrico", primeiro grupo "punk" de Brasília, primeiro grupo musical de Renato Russo). Não era possível perceber, a partir desse disco de estréia, quais seriam os próximos passos musicais da banda. Muitos pontos de vista musicais convivem em cada faixa. Muitas vozes conflitantes cantam cada letra. A Legião Urbana inaugura nesse disco todos os procedimentos poéticos que serão desenvolvidos nos próximos lançamentos. Muitas vezes quem canta é um personagem, que pode citar outros personagens. Outras vezes são contadas histórias sem que se saiba quem está no comando da narrativa. Não existe uma visão de mundo privilegiada, não existe ideologia unida, não existe futuro para quem não acredita em futuro. Mas nada disso fica totalmente claro. Até porque a última canção desse disco coloca tudo, mais uma vez, de forma suspensa, tudo provisório, tudo parece estar aqui apenas "Por Enquanto". Não é só pela predominância dos sintetizadores (e não das guitarras elétricas, como nas outras músicas) que "Por Enquanto" é, de certa forma, desconsertante. O disco termina com uma declaração no mínimo inesperada: "Estamos indo de volta pra casa". Algo aconteceu entre o "tire as suas mãos de mim" e o "estamos indo de volta pra casa". Então existe uma casa, um local de repouso, uma utopia tranquila? Que casa é essa, onde ela fica, quem está indo de volta? Esta casa é o "nosso" futuro? Respostas nos próximos discos? Haverá próximos discos se encontrarmos a casa? "Dois", o segundo disco da Legião Urbana, lançado em julho de 1986, não traz respostas óbvias. E as perguntas são "complexificadas". O disco começa com uma colagem sonora onde se escuta, em meio a outros ruídos e outras músicas, o seguinte trecho de "Será": "Brigar pra quê / Se é sem querer". Mas parece que alguma coisa mudou, porque as perguntas (e talvez a ausência de respostas e de um local de repouso no final da errância) não incomodam tanto, porque foi descoberta uma maneira de se conviver — pacificamente — com a perplexidade: "Ainda estou confuso / Só que agora é diferente / Estou tão tranquilo / E tão contente" ("Quase Sem Querer"). Parece que foi encontrado um antídoto contra a maldade e o erro, quase como se a resposta procurada fosse a resignação: "Nada mais vai me ferir / É que eu já me acostumei / Com a estrada errada que segui / E com a minha própria lei" (Andrea Doria). Mas a resignação não é tudo. Em "Dois" torna-se mais clara uma outra faceta inesperada, principalmente levando em consideração sua origem punk: uma "vontade" de religião e piedade. Em Baader-Meinhof Blues, no primeiro disco, já aparece um vestígio de sentimento cristão; critica-se uma sociedade para a qual "amar ao próximo é tão demodé". Mas em "Dois" o que estava submerso em metáforas e ironias vem à tona; sua primeira faixa, logo a mais "explicitamente" sexual, tem um título bíblico: Daniel na Cova dos Leões. Em "Fábrica", logo a mais punk (coloca-se de lado a indignação de "Metrópole") e a Legião canta: "Nosso dia vai chegar" e "Quero justiça".

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